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sábado, 9 de dezembro de 2006

Entrevista a Frances Kissling - Católicos pela Livre Escolha

Um bom católico pode e deve defender a despenalização da IVG

A hierarquia de poder no seio das instituições religiosas traduz de forma clara a discriminação que as mulheres têm sofrido ao longo de séculos. A estrutura da Igreja tem de ser reformada de forma a ultrapassar anacronismos que chocam com os princípios da igualdade e da justiça exigíveis, mais do que nunca, numa sociedade dita moderna. Esta a posição defendida por Frances Kissiling, líder da organização Católicos pela Livre Escolha, numa entrevista concedida à jornalista Mary Rodrigues, onde também advogou a despenalização da interrupção voluntária da gravidez (IVG) até às dez semanas e exortou os católicos portugueses a exercerem o direito de consciência no próximo referendo.

MARY RODRIGUES – Que mudanças devem ser operadas, na sua opinião, na estrutura da Igreja Católica com vista a conseguir avanços significativos em matérias como a despenalização da IVG, a igualdade de género e a sexualidade responsável?

FRANCES KISSILING – Estou convencida de que o cerne destes problemas passa pela desigualdade de género no que toca ao acesso às estruturas da Igreja, desigualdade essa que se tem preservado como uma tradição entre os católicos. Se tivéssemos mulheres a exercerem o sacerdócio ou se, simplesmente, tivéssemos padres que fossem também homens casados assistiríamos a grandes mudanças.

Estou certa de que nessas circunstâncias haveria uma aceitação imediata pela Igreja Católica dos métodos contraceptivos, já que esses padres casados perceberiam imediatamente que sem contracepção não poderiam tomar conta da sua família numerosa. Por isso, a mudança deve começar pelas bases da hierarquia católica.

Por outro lado, é preciso cultivar e honrar a verdadeira tradição católica, segundo a qual a consciência individual tem de ser respeitada.

MR – É possível ser um católico sério e, ao mesmo tempo, defender a liberdade de escolha nas questões relativas à interrupção voluntária da gravidez?

FK – É perfeitamente possível. De facto, é preciso que fique claro que é nisso precisamente que a maioria dos católicos acredita. Se olharmos para as sondagens que têm sido realizadas a nível mundial, na Bolívia, na Colômbia, no México ou nas Filipinas, em toda a Europa e nos Estados Unidos, a esmagadora maioria dos católicos questionados sobre esse assunto afirma que um bom católico pode e deve advogar a liberdade de escolha e a despenalização da IVG.

Relativamente à contracepção, a vasta maioria dos católicos usam-na. Não há diferença entre os católicos que usam métodos contraceptivos e os que não são católicos e também os usam.

Portanto, a comunidade católica já tomou uma posição sobre estas duas problemáticas, sem seguir cegamente as directivas da Igreja a este respeito que, como se sabe, são excessivamente conservadoras.

Praticar uma sexualidade responsável e viver para o bem inclui liberdade de escolha.

MR – Considera que as confissões religiosas devem ter um espaço de participação no processo de regulação da IVG?

FK – As confissões religiosas têm direito à liberdade de expressão. Nesse sentido, numa sociedade democrática, a Igreja Católica está no seu direito de manifestar as suas ideias e convicções sobre matérias como o aborto, a saúde reprodutiva, a pobreza, isto é, tem o direito de participar no discurso, mas não tem o direito de exigir que as suas opiniões sejam tratadas pelos legisladores como as únicas válidas para a sociedade.

O sentido de obrigatoriedade deve emanar do poder legislativo. É o legislador o responsável por zelar pela separação de poderes. A sua tarefa deve estar centrada nas reais necessidades das pessoas e não na opinião de uma ou outra instituição religiosa, por muito poderosa que esta seja. Eu, pessoalmente, exijo mais de um deputado do que de um bispo.

MR – Em 1998, Portugal realizou um referendo sobre a despenalização da IVG e a Igreja desenvolveu uma forte campanha contra o “sim”, alegando ser a favor da vida. Nesta nova consulta popular é expectável que volte a assumir a mesma posição. Que considerações lhe merece esta atitude da Igreja Católica portuguesa?

FK – Insisto na ideia de que a Igreja tem o direito de expressar as suas opiniões. Todavia, tem também o dever de ser honesta e o que aconteceu nessa campanha de 1998, e a partir de então, representa um défice de honestidade. O argumentário contra o “sim” assentou numa mentira sobre a natureza do referendo. Não se tratou na altura, como não se trata agora, de liberalizar a prática abortiva e sim de não tratar como criminosas as mulheres que, em consciência, considerarem que devem interromper a sua gravidez até às dez semanas de gestação.

Face a isto, aqueles que apoiamos esta nova consulta popular temos a responsabilidade de ser críticos e corrigir estas inverdades. Não podemos assumir como inquestionáveis as vozes da hierarquia católica, uma vez que os seus representantes institucionais usam os argumentos e os métodos que consideram necessários para fazer passar a sua mensagem. Assim, o próximo referendo sobre a IVG em Portugal perspectiva-se como um forte combate pelo esclarecimento e contra as tentativas de espalhar a confusão. Contudo, a estratégia dos defensores do “sim” não deve passar jamais por silenciar a voz da Igreja, antes por fazer vingar a verdade, criar as condições e os recursos para isso e ser suficientemente corajosos para criticar e denunciar as falácias e as hipocrisias subjacentes ao discurso dos partidários do “não”.



PERFIL

FRANCES KISSINLING é presidente da Católicos pela Livre Escolha, uma organização independente, internacional e progressista, de natureza não-governamental, sedeada em Washington, EUA, e com delegações por toda a América Latina, que se tem tornado numa força impulsionadora de mudança no seio da Igreja Católica e tem tido um impacto significativo no discurso público sobre a igualdade de género, saúde reprodutiva, sexualidade e sobre o papel que devem desempenhar as instituições religiosas nas políticas de Estado.

Conhecida como a “mentora do Movimento Pró-Escolha”, Kissiling lançou duas campanhas de sensibilização bem sucedidas sobre, por um lado, o uso de preservativos na prevenção do VIH-SIDA e, por outro, sobre a questão da despenalização da interrupção voluntária da gravidez, tendo publicado numerosos ensaios sobre estas problemáticas e desafiado o status quo, defendendo o direito dos católicos a discordarem dos ensinamentos da igreja no exercício da sua livre consciência.

Frances Kissiling tem impulsionado, na liderança da organização Católicos pela Livre Escolha, o movimento internacional pela saúde reprodutiva e tem pugnado pelos direitos das mulheres.